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Foto: Divulgação

José de Abreu: “Se eu tenho alguma cultura, ela vem dos meus personagens, que eu estudo profundamente”

Ator vive personagem de 300 kg em peça que explora culpa, amor e redenção; temporada em João Pessoa ocorre de 7 a 10 de agosto

7 de agosto de 2025

Depois de mais de uma década longe do teatro, José de Abreu — um dos maiores nomes da dramaturgia brasileira — retorna aos palcos com uma força avassaladora em “A Baleia”, peça que explora as feridas e as redenções da alma humana. Com texto do premiado dramaturgo norte-americano Samuel D. Hunter, a montagem chega a João Pessoa entre 7 e 10 de agosto, no Teatro Paulo Pontes, promovendo um diálogo urgente sobre isolamento, culpa, amor e aceitação.

Protagonizando Charlie, um homem de quase 300 quilos que enfrenta o peso físico e emocional de suas escolhas, Zé de Abreu mergulha em um dos papéis mais desafiadores de sua carreira — e o resultado é arrebatador. A peça, que já emocionou plateias no teatro e no cinema (com Brendan Fraser levando o Oscar por sua interpretação), ganha vida no Brasil sob a direção de Luís Artur Nunes, parceiro de longa data do ator.

Em entrevista, Zé abre o jogo sobre o processo intenso de construção do personagem, a delicadeza com que a homossexualidade de Charlie é retratada e o impacto de abordar a obesidade mórbida no palco. Além disso, reflete sobre seu reencontro com o teatro em um momento de renovação política e pessoal.

Zé, “A Baleia” marca seu retorno aos palcos depois de mais de uma década. O que esse reencontro com o teatro representa para você neste momento da carreira?

É engraçado, só fui me dar conta disso, de que fazia um tempão que eu não fazia teatro, quando o pessoal da divulgação me perguntou, porque na minha cabeça, assim, eu fiz A Mulher Sem Pecado, em 2000, fiz A Prova, em 2003, depois fiz Fala Zé, que eu viajei o Brasil inteiro, meu único monólogo, e depois fiz Bonifácio Bilhões, que foi uma peça que meio que saiu do meu currículo, porque a gente fez uma temporada muito pequena aqui no Rio, uma temporada muito pequena em São Paulo, e não é uma peça que eu tenha um carinho especial. Diferente de A Prova, que eu fiz com Andéia Beltrão, ou A Mulher Sem Pecado, que foi a primeira montagem da primeira profissional peça de Nelson Rodrigues. A peça é de antes de Vestílio de Noiva, então ficou meio escondida na obra do Nelson, porque ele explodiu com Vestido de Noiva e, obviamente, a Mulher Sem Pecado, como era a primeira montagem que teve, não aconteceu nada, foi uma montagem muito pequena na época. Então a gente resgatou a Mulher Sem Pecado como uma peça importantíssima do Nelson Rodrigues. A prova era André Beltrão em Estado de Graça. E sabe por que eu acho que passou esse tempo todo, que eu não sei fazer teatro, porque eu resolvi morar fora do Brasil. E exatamente há 11 anos eu comprei um apartamento na França e aí eu fazia novela, acabava a novela e eu ia para a França. Depois enchi da França, fui morar na Grécia, em Portugal, em Los Angeles e só ficava no Brasil para fazer a novela. Acabava a novela, eu ia morar fora. Teve muito a ver com a política também, né? Com o golpe na Dilma, com o advento do Temer, do Bolsonaro, não tinha a menor vontade de ficar no Brasil e fazer teatro. Agora com a volta da democracia, com a volta do Lula, me deu essa vontade. Eu acho que foi isso agora o que representa a gente só a ver com o tempo. As críticas aqui no Rio foram maravilhosas. Outro dia me mandaram um recorte de um inteligência artificial que selecionou todas as críticas. Realmente, eu acho que para a minha carreira é um ponto alto, um momento importante que eu estou vivendo. Estou muito feliz com esse personagem, que me permite um mergulho profundo na alma humana.

O personagem que você interpreta é profundamente humano, cheio de camadas emocionais e físicas. Como foi o processo de construção desse papel tão complexo?

Como a gente está trabalhando num texto, aliás, o texto é maravilhoso, extremamente realista, quase naturalista, a gente quis fazer um trabalho que há muito tempo a gente não fazia. Quando eu falo a gente, eu falo o Luiz Arthur Nunes, o diretor, que a gente trabalha junto desde 1972. Foi ele que dirigiu o Fala Zé, o meu monólogo, e a Mulher Sem Pecado também. Bom, mas enfim, a gente queria fazer um trabalho Stanislavskiano, a gente queria fazer muito ensaio de mesa, um ensaio onde você senta e discute o texto e os personagens de uma maneira extremamente profunda. A ensaiou três meses, o que é um luxo no teatro profissional, e ficou quase um mês discutindo o texto, todos os atores, com o diretor e o diretor assistente. Então, o processo foi muito intelectualizado. Temos uma das atrizes, a Gabriela é psicóloga, o que nos ajudou muito também na análise psicológica dos personagens. Tínhamos a assessoria de uma médica que também nos ajudou muito nesse aspecto dessa pessoa com excesso de gordura. Como trabalhar isso psicologicamente. E no caso do meu personagem temos um agravante, porque ele é um suicida, ele sabe que está morrendo em qualquer momento. Ele tem uma deficiência cardíaca extremamente grave, provocada pelo excesso de gordura. Isso tudo é uma coisa, eu costumo dizer que se eu tenho alguma cultura, essa cultura vem dos meus personagens, que eu estudo profundamente. Se vou fazer um criador de cavalos, eu vou estudar os cavalos. Se vou fazer um personagem que tem uma pessoa com excesso de gordura, vou estudar o que é ter um excesso de gordura. Então, estudei muito esse aspecto todo.

A peça toca em temas como culpa, reconexão e intolerância com muita delicadeza. Alguma dessas questões mexeu com você pessoalmente durante o processo?

Olha, nunca tinha pensado nisso, mas não. A culpa é inerente ao ser humano, qualquer ser humano tem alguns momentos de culpa, mas não, nada do Charlie me tocou, não tenho nenhum problema de reconexão com os meus filhos, tenho 5 filhos, tenho 5 netos, uma família que se gosta muito, não tenho nenhum, não bateu assim nada meu pessoal, não que eu me lembre, agora por causa da pergunta estou pensando, mas acho que não bateu não, é tudo exteriorizado mesmo.

De forma homexualidade do personagem é abordada na peça e de que forma ela vem tocando o público?

A homossexualidade abordada da peça de uma maneira extremamente cuidadosa, o Charlie não é um gay convencional, ele não tem, digamos, os trejeitos de uma pessoa que se descobriu gay na infância ou na juventude, ele se descobriu gay já casado com filho, ele não viveu a vida gay o tempo todo, ele se apaixona por um aluno e se descobre gay já na fase adulta, então ele não tem nenhum momento o texto coloca e nem o autor – quando nós tivemos o privilégio de trazer o autor para cá, para o Rio de Janeiro, ele veio ver os ensaios e veio ver a estreia – em nenhum momento a peça toca nesse aspecto que ele teria que ter um comportamento, digamos, mais gay. Em nenhum momento ele não usa frases que levem a… Enfim, ele é um gay extremamente, digamos, discreto. Mas acho que pelo que nós estudamos, por esse fato de ele não ter vivido uma vida gay antes de se descobrir gay. Ele se descobre gay já casado com uma filha, já professor há anos, ele é professor de literatura americana. É visto de uma maneira extremamente delicada. Obviamente que o tema da peça é gay. É por causa de uma relação gay que acontece toda desgraça na vida dele, mas é mostrada de uma maneira extremamente leve, gentil e sutil.

E a questão do peso do personagem, com cerca de 300 kg. Como você enxerga a importância de levar essa temática da obesidade para o palco? Como tem sido a reação desse público?

Nunca havia estudado a obesidade mórbida antes. Conhecia superficialmente o tema por acompanhar programas como ‘Quilos Mortais’ com minha esposa, mas não era algo que me aprofundasse. Para a peça, contamos com a assessoria de uma médica, que nos ajudou a entender essa condição. No caso do Charlie, há um forte componente psicológico: seu namorado, Alan, morreu de inanição, enquanto ele se destrói comendo excessivamente. A enfermeira Liz, irmã de Alan, cuida de Charlie, mas também é parte do problema — ela não é apenas uma profissional, e sim alguém emocionalmente envolvida. Ela alimenta Charlie, mesmo sabendo que isso acelera sua morte, porque está presa nesse ciclo de culpa e dor. A peça explora como o trauma psicológico pode levar a extremos opostos: a recusa total à comida e o excesso autodestrutivo

Qual é a sua expectativa para essa temporada em João Pessoa com um espetáculo tão potente?

Espero uma recepção muito boa. Não tenho tanta vivência assim de viagem, eu não viajei muito pelo Brasil com teatro, como muitos colegas fizeram, porque eu estava sempre fazendo televisão ou cinema, então montava peça no Rio quando eu ia viajar, no máximo eu ia para São Paulo, porque tinha que gravar a novela e tal. Espero que a peça seja extremamente bem recebida, é uma peça muito inteligente, que faz as pessoas pensarem em suas próprias vidas, embora o espectador possa não ser gay e nem ser uma pessoa com obesidade, mas a peça passa por várias camadas dos seres humanos, é um mergulho na alma humana, é aquele tipo de teatro que dá prazer de fazer, sabe? Antigamente a gente podia até chamar de teatrão, que é aquele teatro tão bem feito, a luz, a cenografia, o figurino, o texto, o elenco, a produção, a maquiagem, tudo tá num nível altíssimo de qualidade. Acho que isso atrai o público de uma maneira geral e ainda mais o público exigente, como o paraibano.

Fonte: Redação