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Foto: Divulgação

Mateus Nachtergaele: “Todas as homenagens que recebo da Paraíba, devo ao Grilo e, mais profundamente, a Ariano Suassuna — que conheci, amei e tive como amigo”

Após receber honraria na ALPB, ator destaca influência de Ariano Suassuna em sua carreira e relação especial com o Nordeste brasileiro

23 de outubro de 2025

Poucos atores conseguiram imprimir na alma do público brasileiro uma marca tão profunda quanto Mateus Nachtergaele. Intérprete de personagens emblemáticos — da travesti Darlene, em Hilda Furacão, ao icônico João Grilo, em O Auto da Compadecida —, ele se tornou uma das vozes mais autênticas da dramaturgia nacional. Nascido em São Paulo, com raízes que passam pela Bélgica e pelo sertão, Mateus percorreu o Brasil por dentro de seus papéis, revelando as camadas humanas e sociais de um país múltiplo.

Na Paraíba, onde recebeu nessa quarta-feira (22) a Medalha Augusto dos Anjos, o ator reafirmou essa ligação profunda com a terra de Ariano Suassuna — o amigo, o mestre e o autor da obra que o consagrou. Humilde, grato e profundamente ligado ao povo, ele fala com ternura sobre o Nordeste que aprendeu a conhecer “por dentro”, sobre o peso simbólico de viver o João Grilo duas vezes e sobre o papel político e poético da arte num país de tantas contradições.

Nesta entrevista, Matheus Nachtergaele fala com a mesma lucidez e generosidade que empresta a seus personagens: sobre o prêmio, sua relação com a Paraíba, a responsabilidade de representar o povo simples e o amor incondicional pela arte que denuncia, encanta e resiste.

Você acaba de receber a Medalha Augusto dos Anjos, uma das maiores honrarias culturais da Paraíba. O que esse reconhecimento representa para você?

Tudo isso é um presente que eu ganho do João Grilo, no fundo, né? Quando você é ator no Brasil e recebe um personagem como o Grilo para incorporar — e agora duas vezes, com O Auto da Compadecida 2 —, é um privilégio enorme. Essa nova versão foi uma grande homenagem à obra de Ariano, e eu pude reviver o personagem com o mesmo carinho. Todas as homenagens e honrarias que recebo da Paraíba, devo ao Grilo e, mais profundamente, a Ariano Suassuna — que conheci, amei e tive como amigo. Sempre que estive aqui foi por um motivo maravilhoso: apresentando filmes, recebendo carinho, como o título de cidadão taperoense ou, como agora, recebendo a Medalha Augusto dos Anjos é algo que me toca profundamente.

Você criou uma identidade muito forte com a Paraíba. Como vê essa relação hoje?

Vivi o João Grilo — e isso é muito forte dentro da cultura brasileira. É a peça mais montada do Brasil, o que não é pouco. Tive a honra de ser o João Grilo da versão mais popular do audiovisual. O Auto da Compadecida de Guel Arraes começou como série, virou sucesso de cinema e agora volta a bater recordes. É uma obra paraibana que fala por todo o Brasil.

Ser o intérprete do que talvez seja o maior personagem cômico da dramaturgia brasileira é uma honra e uma responsabilidade. Às vezes penso: “sou só um ator que teve a sorte grande de viver o João Grilo”, mas aceito o carinho com gratidão.

Fui recrutado pelo cinema da retomada para percorrer o Nordeste — eu, um paulistano de origem belga! Acho que meu tipo físico me permite ser paraibano, pernambucano, cearense… Fui aprendendo o Nordeste por dentro de mim, pelas paisagens e pelos personagens. Cada vez que venho, fico encantado. A Medalha Augusto dos Anjos é uma das honrarias mais bonitas da cultura paraibana, e sou muito grato ao deputado Felipe Leitão e, claro, ao povo da Paraíba.

Como você enxerga o engajamento político dos artistas hoje, num momento em que há tanto ruído e polarização?

Acredito que qualquer fazer artístico tem algo de político. O Auto da Compadecida, por exemplo, é uma denúncia profunda das injustiças financeiras e sociais do Brasil. João Grilo e Chicó são trabalhadores analfabetos, sempre à mercê de patrões e autoridades injustas — o padeiro explorador, o coronel autoritário, a igreja corrupta.

Mas veja: não é uma obra de esquerda ou de direita, é uma obra de arte. Ariano era um grande pensador, e o teatro dele tem fundo político, sim, porque fala do povo. Quando sinto necessidade sou mais claramente político, mas acredito que toda a minha obra, de algum modo, é engajada. Sou muito convocado para representar tipos marginais do Brasil — a travesti de Belo Horizonte, o traficante Sandro Cenoura de Cidade de Deus, o João Grilo, que é o amarelinho safado do sertão. Representar a classe pobre já é um gesto político. A arte tem o papel bonito de mostrar as injustiças — e denunciá-las, mesmo que indiretamente.

O Auto da Compadecida e Cidade de Deus mostram realidades diferentes, mas igualmente verdadeiras. Que leitura você faz dessas obras hoje?

São ficções, mas calcadas em verdades do cotidiano brasileiro. O Auto é uma comédia bufa, inspirada na tradição da commedia dell’arte, com estrutura teatral refinada dos grandes cômicos, como Molière. Ariano Suassuna, com o Movimento Armorial, nos ensina a amar o Brasil e a dar ao povo simples a honra que ele merece. No Auto, ninguém fala “errado” — todos falam um português bonito, bem construído. Isso é embelezar a cultura popular. Mas, ao mesmo tempo, a verdade está lá: João Grilo e Chicó estão passando fome, trocam a comida deles pela da cachorra — e a cachorra morre.

Como você avalia o momento dos atores e atrizes paraibanos que vêm se destacando em produções nacionais?

Está acontecendo algo lindo. Com o fim dos contratos longos na Globo, artistas de todo o país estão tendo espaço. E os paraibanos estão na crista da onda, com muito talento. Minha relação com a Paraíba vem de longe. Em 2003, para montar Woyzeck, de Büchner, com o grupo Piollin. Sou amigo do Nanego Lira, da Soia Lira, do Luiz Carlos Vasconcelos, da Marcélia Cartaxo, do Everaldo. Tenho profunda ligação com essa terra e com esses artistas. Fui convocado para representar o Nordeste na retomada, mas hoje vejo com alegria os atores nordestinos ocupando o protagonismo que sempre foi deles. Espero ter honrado esse povo com meus personagens. Amo o Nordeste — conheço o nordeste por dentro de mim. E essa medalha, essa honra, vou guardar no peito para sempre.

Você foi a Cabaceiras gravar O Auto da Compadecida, e há muitas histórias dessas filmagens. Como foi essa convivência com o povo da cidade?

Eu sou assim — gosto de perambular entre as pessoas. Me nego a sentar em cadeiras de honra. A matéria-prima de um ator é a sua carne, a sua cultura e o povo que ele representa. Se eu não tiver acesso às pessoas, é como se um pintor não tivesse acesso às suas tintas. Sou mais feliz entre as pessoas simples. A sabedoria popular me encanta mais do que a sabedoria de enciclopédia.

E Cabaceiras deixou lembranças?

Todas! Até um burrinho eu tive lá. Um homem me ofereceu o animal para eu ir até o set e voltar. Falei que não sabia se teria dinheiro para alugar um burro, não sabia cuidar, o set era próximo, dava para ir a pé. E ele me disse: “Eu ficaria muito feliz se você alugasse o meu burrinho”. E aí eu falei assim: “Tá bom, entaõ quanto é?” E ele falou: “É um. Um real”. Perguntei se era por dia, ele disse: “Não, é um tudo”. (risos). São essas histórias simples que me marcam.

Fonte: Redação