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Foto: Arquivo Pessoal

Anne Galvão “É importante que haja contextos que representem a negritude também atrás da tela, pensando o cinema”

Anne Galvão destaca a importância da representatividade negra no cinema, discute os desafios enfrentados como consultora de diversidade e inclusão, e sugere medidas para promover uma cultura mais inclusiva no setor audiovisual.

18 de abril de 2024

A representatividade e a inclusão têm atravessado barreiras e a cada dia ganham espaço como temas centrais no cenário audiovisual contemporâneo. À medida que o setor busca ampliar as vozes e perspectivas retratadas nas telas, profissionais como Anne Galvão, emergem como agentes de mudança. Como jornalista e consultora de diversidade, Anne tem desempenhado um papel importante na promoção da presença do negro tanto na frente quanto por trás das câmeras. Suas contribuições foram especialmente evidentes durante as oficinas “O Preto DA Tela & o Preto NA Tela”, realizadas no Cine das Almas e Cine Paraíso, em Itabaiana e Juripiranga, respectivamente, durante a Semana do Audiovisual do Vale do Paraíba Fernando Teixeira.

Anne explora nos seus debates não apenas a importância de ver pessoas negras representadas de forma autêntica nas telas, mas também a necessidade de incluí-las em todas as etapas da produção cinematográfica.

Confira a entrevista exclusiva ao Portal Paraíba Total abaixo:

Como foi sua participação na Semana do Audiovisual do Vale do Paraíba Fernando Teixeira com a oficina “O Preto DA Tela & o Preto NA Tela”?

As oficinas foram uma introdução sobre como as pessoas negras têm sido representadas na mídia em geral, desde o jornal, pinturas e TV, até especialmente no cinema, em parceria com a Carine Fiúza que é uma pesquisadora paraibana. A partir dessa questão midiática, política e cultural, abordamos esse tema mostrando como a pessoa negra está relacionada a esse passado de escravidão e lugar de servidão nos papéis em novelas. Teve uma grande transição no Brasil quando Taís Araújo fez uma protagonista de novela, porque antes na maior parte dos papéis a mulher era empregada e o homem estava no lugar do bandido. Exploramos como é importante que não só haja personagens em outros contextos que realmente representam a negritude, mas também das pessoas negras atrás da tela, pensando o cinema como diretores, diretores de arte, e outros. Mas é impossível falar sobre a pessoa negra sem falar sobre escravidão, mas também sobre a herança negra, como o império egípcio e conseguir descolonizar a própria mente.

Qual a sua análise sobre a representatividade negra no cinema Paraibano?

O cinema paraibano foi um grande revolucionário com o filme Aruanda de Linduarte Noronha, foi o primeiro filme do movimento do Cinema Novo no Brasil que falava mais sobre a realidade, é quase um documentário. Fala sobre a vida de uma família que é que quilombola e vai em busca de um lugar com água para conseguir se desenvolver, essa é uma referência muito importante. No festival vimos filmes lindíssimos, inclusive partes de “Preciso Falar do Além-Mar” de Carine Fiúza. Com esse festival, os produtores e as mudanças com as pessoas negras e políticas públicas de cultura que tem incentivo e mais oportunidades.

Você mencionou a importância de pessoas negras estarem não apenas na tela, mas também por trás das câmeras, como diretores e diretores de arte. Como podemos aumentar a representatividade nos bastidores da indústria cinematográfica?

O cinema sempre foi sinônimo de poder. Não basta termos personagens negros que fogem aos estereótipos, se ainda assim são criados por mentes que enxergam o mundo de uma só forma. Diretores, produtores de arte, roteiristas… Todas as posições que definem que história vão contar e que rumo vão tomar são constituídas por pessoas, que fazem parte de uma cultura, com um repertório visual, imaginário e coletivo. A maior parte do cinema produzido até hoje foi criado a partir do olhar do homem branco para o mundo. Para conhecermos novas possibilidades de narrativas, personalidades e formas é preciso que quem esteja contando essas histórias tenham muito mais que migalhas desse espaço dentro da indústria que investe em grandes produções e movimenta renda para os artistas. No momento não vejo outra possibilidade para equilibrarmos esse cenário que não envolva políticas públicas inclusivas para mulheres, pessoas negras, indígenas, amarelas, com deficiência e por aí vai.

Em sua palestra, você abordou a necessidade de descolonizar a mente para criar novas imagens da pessoa negra. Poderia explicar mais sobre esse conceito e como ele se relaciona com a produção audiovisual?

Para que fosse bem-sucedido o sequestro de quase 5 milhões de pessoas negras trazidas de África para trabalharem escravizados no Brasil e todo o processo de colonização de seus costumes, utilizou-se uma estratégia de desumanização de negros sob diversos argumentos comprovadamente falsos. Antes de embarcarem no navio negreiro, se misturavam pessoas de regiões com línguas diferentes e davam novos nomes para cada um, iniciando um processo de apagamento de identidades e histórias daqueles indivíduos. Depois de tanta dor causada a esse povo e seus descendentes, é um dever moral abrir espaço na mídia para que as pessoas negras tenham consciência de seu passado recente e antigo também, considerando milênios de sabedorias e riquezas, que até hoje deixam historiadores intrigados, como as heranças egípcias. A partir de uma libertação mental do que foi violentamente imposto como belo, certo e justo, mais pessoas negras acessam o orgulho de suas características e antepassados, representando e sendo representados conforme o que puderam resgatar de sua memória coletiva, ajudando assim na sua autoestima e potência ilimitada, especialmente de crianças e jovens negros.

Quais são os principais desafios que você enfrenta como consultora de diversidade e inclusão, especialmente no setor audiovisual?

Por conta de décadas de políticas públicas de inclusão, contamos com um contingente de pessoas que antes não teriam acesso à universidade e ao mercado de trabalho, hoje atuantes para se sentirem pertencentes e contempladas nas organizações por onde passam. Isso impacta diretamente no comodismo da homogeneidade desses espaços – eu mesma sou cria do ProUni com bolsa de 100% para cursar jornalismo. O maior desafio da área de diversidade é garantir a dignidade integral de quem propõe novas soluções, gerando fazeres mais diversos e enriquecidos em uma organização. Esse trabalho é uma caminhada a passos lentos e firmes, pois frequentemente esbarra em relações de poder que resistem a mudar de comportamento e demandam a mediação de conflitos frente a situações de discriminação. Essa é a parte mais delicada do trabalho, mas utilizo metodologias bastante eficientes com base na justiça restaurativa para dar encaminhamento quando é preciso. Essa realidade é presente em qualquer agrupamento de pessoas trabalhando juntas, e no audiovisual não é diferente.

Em sua experiência, como as organizações podem promover uma cultura mais inclusiva e diversificada, especialmente no contexto do cinema e do audiovisual?

Em primeiro lugar é preciso ter, no mínimo, uma pessoa contratada exclusivamente para cuidar disso, que ganhe um salário para desenvolver esse trabalho, ao invés de diluir essa responsabilidade de forma voluntária entre toda a equipe, sendo que sabemos bem que esse ambiente de trabalho é corrido e cada pessoa está focada na sua função. É necessário haver uma Política de Diversidade e Inclusão que seja levada a sério e um profissional de referência para garantir o cuidado relacionado a pertencimento e respeito nas relações entre equipe durante a produção, além de contribuir com decisões que podem ser polêmicas nos bastidores da produção ou na narrativa proposta pelo filme, e que podem até impedir o maior potencial de sucesso da obra por conta de detalhes que foram subestimados inicialmente.

Como você acredita que sua jornada pode inspirar as pessoas?

Começa pelo fato de a minha jornada inspirar a mim mesma. Quando eu era adolescente, seria incapaz de imaginar o quão longe eu poderia estar hoje da vulnerabilidade social em que nasci e cresci enquanto filha de mãe negra e solo. Superei a fome, abusos sexuais, depressão, lesbofobia, racismo, desemprego, misoginia, solidão, entre outras dificuldades, para aos poucos e do meu jeito ir conquistando o meu espaço, a partir das minhas próprias ideias e fazeres, sem aceitar goela abaixo o que me é imposto pela estrutura dominante pelo simples fato de ser uma mulher racializada. Renunciar o papel criado pela sociedade para mim não é fácil, pelo contrário, pois se decolonizar e reeducar frente a tantas opressões gera muitos conflitos internos, mas mais difícil ainda seria viver uma vida vazia de sentido.

Anne Galvão

Promove a inclusão a partir da sua jornada na comunicação de causas, abrindo caminhos ao ser observadora e propositiva como mulher, negra, lésbica, oriunda da periferia e da migração nordestina, filha de mãe solo e a primeira pessoa da sua família a se formar na universidade.

Fonte: Redação