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Taty Valéria: “Não é sobre questões feministas, é sobre questões sociais, e o feminismo é uma parte fundamental disso”

Jornalista fundadora do portal Paraíba Feminina traz sua visão acerca da cobertura de pautas voltadas para os Direitos Humanos

9 de novembro de 2023

Taty Valéria é jornalista graduada pela Universidade Estadual da Paraíba, já atuou como assessora de imprensa e em diversos veículos na imprensa paraibana. Mas foi em 2019 que seu trabalho ganhou ainda mais projeção com o projeto Paraíba Feminina, único espaço feminista e genuinamente paraibano, focado no jornalismo responsável e atento às violações de direitos humanos e de populações vulneráveis.

Em entrevista exclusiva ao Paraíba Total, Taty Valéria – que foi responsável por dar visibilidade ao caso do médico que agredia a ex-mulher, sendo o assunto pautado pelo Fantástico, da Rede Globo –, falou sobre a criação do Paraíba Feminina, questões que impactaram sua carreira e trouxe um pouco da sua visão sobre o papel do jornalismo e do jornalista em pautas que tratam de direitos humanos.

A entrevista da semana também foi indicada ao Prêmio Mulher Imprensa 2023, na categoria Nordeste.

Confira abaixo:

Como nasceu o Paraíba Feminina?

O Paraíba Feminina nasceu das minhas experiências e daquilo que me incomodava. Desde a época da faculdade eu tinha o desejo de ter um espaço de mídia que tratasse as questões de gênero de forma mais séria, mais respeitosa. O que se via na mídia direcionado às mulheres era sempre focado em maternidade, decoração, moda, beleza. Não que isso não fosse importante, mas eu achava muito pouco. Mas aí a vida foi se sobressaindo. Casamento, filhos pequenos, um divórcio no meio, dois empregos de uma vez, deixei esse desejo adormecido. No início de 2019, Bolsonaro era presidente e naquele momento eu senti um medo absurdo de que as coisas piorassem muito, o que de fato aconteceu. E, em paralelo, minha própria vida pessoal estava bem complicada. Então o Paraíba Feminina nasceu disso tudo e com um objetivo bem claro: ser um espaço de mídia de denúncias de violações, com foco nos Direitos Humanos.

Quais são os principais desafios que você enfrenta ao cobrir questões feministas no jornalismo?

Independente de ser feminista, as barreiras já começam pelo fato de ser mulher. Os espaços são muito desiguais, isso é muito nítido. Quantas jornalistas paraibanas merecem destaque, mesmo sendo muito boas no que fazem? E quantos homens medianos ganham muito mais fazendo apenas o mínimo? Outra coisa que é preciso destacar é que não cubro pautas feministas, cubro pautas de Direitos Humanos, direitos fundamentais, até porque o feminismo é isso. Violência doméstica, feminicídio, abuso sexual infantil, violência obstétrica, não são pautas feministas (apesar de que foi o movimento feminista que trouxe essas questões para dentro da discussão) são pautas sociais. Em relação a superar esses preconceitos e machismos, não existe uma fórmula. Acho que vai muito da noção de enfrentar e denunciar o que precisa ser dito. É apurar, escrever, publicar e esperar que o público compreenda a necessidade de se falar sobre essas questões.

Pode nos contar sobre algum projeto ou reportagem que tenha sido especialmente significativo em sua carreira?

Eu tenho alguns casos que marcaram muito, mas vou citar dois. O primeiro foi de uma mulher que acertou o ex-marido com uma barra de ferro. A notícia de que uma mulher, numa cidade do interior, atingiu o ex-marido, duas vezes, com uma barra de ferro, viralizou. Mas não tinha nenhuma informação sobre aquela mulher e queria ouvir o que ela tinha a dizer. Consegui o contato dela, conversamos por quase duas horas, até com a mãe dela falei. Já fazia uns cinco anos que ela era perseguida e ameaçada, com medidas protetivas que não ajudavam em nada. Ela havia sido abandonada pelo sistema. Até que viu o ex-marido à espreita na porta de um mercadinho, com uma faca na mão. Ela cansou e se defendeu como podia. Depois da matéria, entrei em contato com a Rede de Proteção do Estado, que chegaram até ela e finalmente, essa mulher pôde ser acolhida. Outro caso foi de uma moça que estava sendo ameaçada de morte pelo ex-marido, que estava detido numa penitenciária em Pernambuco. Mesmo preso, ele tinha um aparelho celular, que usou para fazer as ameaças. Também acionei a Rede de Proteção, que levou essa moça até uma Casa Abrigo e garantiu sua segurança. Essas duas histórias são significativas porque demonstram a vulnerabilidade que as mulheres do interior se encontram, o sistema de proteção não chega até elas. E foi especialmente gratificante, do ponto de vista pessoal, saber que eu fiz parte de um processo que as salvou.

Você foi indicada a um prêmio recentemente. como foi receber essa indicação com outras profissionais que atuam na mesma área que você em outras localidades do país?

Fui indicada ao Prêmio Mulher Imprensa 2023, na categoria Nordeste. Fiquei extremamente honrada e feliz, comemorei como se fosse uma vitória mesmo, e quase cheguei lá! A votação era popular e a diferença entre eu a vencedora, Rayssa França, de Alagoas, foi de menos de 1%. Isso significou muito pra mim. Essa publicidade toda me fez ser conhecida para além da regionalidade, mas o principal, o que realmente fez diferença pra mim, foi perceber que as pessoas da Paraíba acompanham e gostam do meu trabalho.

Como você vê o papel do jornalismo na promoção da igualdade de gênero e na sensibilização para questões feministas?

O jornalismo tem uma função social, infelizmente isso se perdeu muito. O que a maioria busca hoje, é status. Pra ter alguma credibilidade, o próprio jornalista precisa se tornar um produto, mas essa é outra questão. Mas eu ainda defendo a tese de que temos uma responsabilidade gigantesca na promoção de direitos e me causa um grande desconforto observar no que se transformou o jornalismo paraibano, salvo algumas exceções. E mais uma vez, volto na mesma tecla: não é sobre questões feministas, é sobre questões sociais, e o feminismo é uma parte fundamental disso.

Quais são os tópicos ou áreas dentro do feminismo que você considera cruciais e que merecem mais atenção na mídia?

Eu posso resumir numa coisa bem básica: respeito com as vítimas de crimes de gênero, e lá vamos nós de novo: não é sobre ser feminista, é sobre respeitar direitos básicos. Não cabe ao profissional de imprensa julgar ou fazer ilações sobre o que uma vítima de estupro estava vestindo, ou onde ela estava, ou com quem ela estava. Temos uma vítima de um crime, que merece ser respeitada e não ter sua imagem vilipendiada. Quando se abre espaço para um abusador ou agressor de mulheres contar sua “versão”, corre-se o risco de que esse espaço seja usado para atacar a vítima. E como você espera que uma mulher assassinada se defenda? Ou uma mulher que foi estuprada? Não é razoável esperar que uma mulher que foi agredida seja entrevistada por um radialista grosseiro e machista (e aqui não cito ninguém específico) isso é inviável! Acredito que cursos e manuais de Direitos Humanos dentro das redações poderiam melhorar, em muito, a abordagem dos profissionais de imprensa com temas de violência de gênero, racismo, Lgbtfobia. Lembrei de um colega de profissão que me perguntou qual era a melhor forma de abordar uma vítima de estupro. Respondi que a melhor forma era que essa vítima não fosse abordada por um homem, isso deveria ser uma coisa básica, mas que, infelizmente, ainda está longe de ser uma regra nas redações paraibanas.

Como você acha que o jornalismo pode evoluir para ser mais inclusivo e representativo das vozes femininas e de minorias de gênero?

Abrindo as redações para mais mulheres, homens e mulheres trans, pessoas negras. Pessoas com lugar de fala. Contratar uma mulher preta ou uma mulher trans apenas para cumprir cota não serve de muita coisa, essas pessoas precisam ter os mesmos espaços, os mesmos salários, as mesmas condições de trabalho. Garantir não só equidade, mas oportunidade para que esses profissionais possam ter acesso à cursos e treinamentos voltados para os Direitos Humanos.

Quais são seus conselhos para jornalistas aspirantes que desejam se especializar em pautas feministas e seguir sua trajetória de sucesso?

Olha, ainda não sei se a minha trajetória é de sucesso, mas o objetivo é esse! A primeira coisa que posso dizer é que não vai ser fácil e é preciso criar uma casca protetora porque trabalhar com isso num estado extremamente machista como a Paraíba, é bem complicado. Como disse antes, sofri muito no início. Os próprios ‘colegas’ tentam diminuir e te constranger esperando uma reação sua pra te descredibilizar. Uma segunda coisa bem importante é: estude! Estude os fundamentos do feminismo, do movimento negro, da pauta LGBT. Tente entender como funcionam as relações de poder, de onde vem tanta opressão. Eu indico demais o Guia de Mídia e Direitos Humanos elaborado pelo Coletivo Intervozes, que traz bem detalhado as formas que os profissionais podem e devem abordar questões mais sensíveis.