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A mentira como verdade literária

31 de agosto de 2015

Conheci o famoso cordelista e xilogravurista pernambucano J. Borges em seu ateliê, na cidade de Bezerros, perto de Caruaru. Isso já tem alguns anos, e ele ainda estava se recuperando de uma cirurgia de catarata. Na ocasião, me deu de presente não só uma bela xilogravura intitulada “O cordelista na feira”, mas também sua matriz entalhada em madeira, ainda com os resíduos coloridos da tinta de gravação. Fiquei bobo feito criança com o mimo, e conversamos um bom tempo sobre literatura popular e imaginação. J. Borges me disse que mente à beça nos cordéis, e que fabulação e mentira são indissociáveis.

Ariano Suassuna considerava J. Borges o maior gravador popular do Nordeste. Os dois eram grandes amigos. Autor de O Auto da Compadecida, – onde luzia a adorável dupla de mentirosos João Grilo, que mentia por astúcia; e Chicó, que mentia por compulsão ingênua – Suassuna dizia ter simpatia por dois tipos de gente: o doido e o mentiroso. “Os doidos perderam tudo, menos a razão. Têm uma razão particular. Os mentirosos são parecidos com os escritores que, inconformados com a realidade, inventam outras.”

Talvez por acreditar que só os maus jornalistas mentem é que eu tenha decidido ser também cronista. A crônica é meu salvo-conduto para mentir. Quando me perguntam se todas as histórias que eu conto aqui são verdadeiras, eu respondo: depende. E recorro a um personagem de “A grande fome”, de John Fante, para me explicar. Num dos contos do livro, Antônio Bandini é um homem inflexível que recusa nuances de interpretação da vida. Para ele, a verdade é o momento raro em que a palavra está sincronizada com o real. A verdade dele é sempre taxativa, definitiva, inapelável.

O crítico literário José Castelo, analisando o personagem de Fante, vê um laço perverso ligando verdade e retórica. Quando Bandini descreve uma mulher que vive com ele como “feia”, o faz sem atenuantes, como expediente sádico, como exercício destravado de crueldade. Bandini descreve-se como “um escritor de verdade”. Um escritor de verdade não mente? Castelo parece ter a resposta ao fim de seu artigo sobre Fante: “literatura é isso, ficção, invenção, arbítrio. Mas é também o desmascaramento de toda afirmação peremptória”.

Talvez resida nisso a grande força da literatura. Ao contrário do jornalismo, que nos deve perturbar e inquietar desvelando verdades ocultas, a ficção literária é capaz de, mentindo, questionar-nos e revolver nossa alma soprando verdades perturbadoras.